Quando os remediados são ‘convidados’ a enriquecer os ricos
A pretexto de incentivar os proprietários a efectuarem obras para reabilitação de fogos degradados, a Câmara de Cascais definiu um conjunto de áreas urbanas, designadas por ARU-Áreas de Reabilitação Urbana, que geralmente correspondem aos núcleos antigos das localidades, dentro das quais quem proceda à recuperação dum prédio, ou fracção dele, pode recolher um conjunto de benefícios fiscais.
Tal medida, acolhida na Lei 82-D/2014, do tempo da maioria PSD/CDS e do Governo de Passos Coelho e Paulo Portas, é complementada por outra que possibilita à Câmara agravar o valor do IMI sobre imóveis degradados, independentemente da capacidade económica dos proprietários e ainda que os mesmos estejam habitados.
Para que beneficiem das isenções fiscais, basta que a Câmara reconheça que da intervenção resultou uma classificação energética igual ou superior a “A”.
Ao apelar à preservação de imóveis com interesse patrimonial relevante, obviamente que, à partida, nenhum eleito municipal se atreve a opor-se-lhe, sobe risco de ser acusado de não cuidar e não defender aquilo que marca a história dos lugares, as vivências e as culturais que neles se desenvolveram. Até porque a reabilitação é ainda apresentada como a resposta para manter os habitantes mais antigos que guardam as memórias e humanizam os lugares.
Mas, o que na prática assistimos já não é tanto assim. Ou antes, não é nada assim.
Desde logo, quem vive numa casa degradada só ali está porque de todo não teve condições materiais para a conservar e melhorar ou, no caso em que a recebeu por herança, também não conseguiu reunir os meios necessários para as obras ou, ainda, e muito provavelmente, porque o valor que lhe oferecem em venda é de desprezar.
É para “solucionar” estes problemas, de fazer ou largar, que a câmara decide aumentar o custo com o IMI, tornando-o no factor de pressão que vai induzir as famílias a desfazer-se da propriedade a qualquer preço, que só será o melhor para quem pode comprar. E para isso, cá estarão os “empreendedores”, atentos e com dinheiro fresco.
Enquanto Vereador, os exemplos de “reabilitação” que me têm passado pelas mãos compravam que, por detrás de bons propósitos quase sempre se escondem os melhores negócios e que aquilo que parece, normalmente não é.
Não é verdade que as pessoas estejam a ser incentivadas a permanecer nas casas e nos lugares onde habitam há dezenas de anos, porque são sempre outros os que ficam com as vivendas, os chalés, os prédios ou os andares “reabilitados”.
São sempre terceiros, os donos do dinheiro fresco, que fazem as recuperações e deoois revendem os imóveis a preços muito mais altos que aqueles que o mercado oferece para construções novas de raiz. Precisamente porque estão localizados nas zonas mais nobres e valorizadas.
Na única decisão de reunião da Câmara em que participei, e em que a reabilitação foi efectuada pelo próprio proprietário, que por decisão do PSD, CDS e PS arrecadou todas as bonificações fiscais possíveis, o mesmo já tinha logrado despejar todos os inquilinos que viveram no prédio durante décadas, voltando a arrendar os apartamentos a novos inquilinos a preços várias vezes multiplicados.
Não é verdade que a preservação da memória arquitetónica seja o valor que move o “empreendedor” e a quem na Câmara que lhe vai perdoar as taxas e os impostos. Porque nem sequer é preciso que ao “reabilitado” se lhe respeite o “esqueleto”. Não é único o caso em que no lugar do antigo se assistiu à construção integral de coisa nova, que nada tem a ver com o derrubado.
O caso do Grande Hotel do Monte Estoril, encerrado há anos e adquirido em 2014 por uma sociedade de investimentos por valores que não conseguimos aceder mas que se estima terem sido muito convidativos, é paradigmático dos grandes negócios, melhor será chamar-se-lhes negociatas, da “reabilitação urbana”.
Após a compra do prédio devoluto, a investidora submeteu à Câmara um processo de obras, aprovado em tempo supersónico, inferior ao que se leva a despachar a instalação duma marquise pedida por qualquer mortal munícipe, o que lhe permitiu concluir todo o processo de reabilitação em apenas 18 meses.
Desta feita, em vez de quartos de hotel, resultaram 15 apartamentos, que a imobiliária classificou de “Premium”(…) “dispondo de grandes terraços com vista panorâmica sobre o mar, piscina, ginásio, sauna, segurança 24 horas por dia”. E todos vendidos ainda antes de concluídas as obras “a preços de mercado entre 1.090.000 e os 3.670.000 euros”.
Em 19 de Novembro, a Câmara aprovou, apenas com voto contra do PCP, conceder à “reabilitadora” a isenção de pagamento das taxas de licença de obras, do Imposto Municipal de Transacções (IMT) na compra inicial do prédio e na venda dos apartamentos, o Imposto de mais-valias sobre os lucros da operação e, ainda, o IMI devido anualmente por quem comprou os apartamentos por 1.090.000 ou 3.650.000 de euros.
Tudo somado, pelas mãos do PSD e CDS-PP, e também do PS, a Câmara de Cascais isentou os “empreendedores” de entregarem milhões de euros ao município, permitindo-lhes aumentar os lucros, que tão grandes não alcançariam a construir outra coisa em qualquer parte.
De facto, para quê sacrificar os ricos se aquilo que a “gestão” de Carlos Carreiras faz pagar aos remediados de Cascais, já são dezenas de milhões de euros a mais do que incompetentemente a Câmara é capaz de gastar.